Mística por natureza, a performer Marina Abramovic buscava - tenazmente - por sinais, e se nos abrirmos ao simbólico, ele também se abrirá a nós. Ela foi visitar um vidente famoso, um judeu russo que lia o futuro em borras de café. E entre outras coisas, disse-lhe que somente seria feliz com um homem que a amasse mais do que ela a ele. Mas, previu em seguida: seu maior sucesso virá quando estiver sozinha, os homens travarão sua vida.
Um tempo depois, a artista conheceu Ulay numa galeria em Amsterdã onde iria se apresentar. Ele seria o guia durante sua estadia. Sua aparência, um tanto andrógina e exótica, despertou a atenção de Marina. A química transcendeu a lógica. Antropofagia: devorar cada detalhe do outro.
Não se desgrudaram mais. Passaram a se apresentar juntos. E na primeira performance: “Relação no Espaço”, ambos (nus) colidiam e ricocheteavam um no outro, inspirados em um pêndulo de Newton. Moraram por anos em um furgão Citroen, com sua cachorra Alba. Queriam transpor os papeis masculinos e femininos para fundir-se em uma terceira unidade: “aquele eu”, uma energia não viciada pelo ego, mescla pura de gêneros, sublimação da arte.
Na performance “Energia em Repouso”, houve um teste extremo de confiança. Marina segurava o arco e Ulay, a corda estendida com a ponta voltada ao seu peito. Tensão iminente, ameaça constante. Se os dedos de Ulay falhassem, poderia ser fatal. Havia microfones acoplados para registrar o som dos corações batendo.
Pretendiam casar-se após a travessia na Muralha da China. Partiriam cada um de um lado, e ao cabo de três meses, selariam a união. Os convites e projetos fervilhavam, muitos dirigidos à Marina, abalando a relação. A distância rangia entre eles, e além das traições, Ulay queria um filho; Marina, não. Após doze anos, decidem firmar o término no cume da Muralha. Ulay se casa com a guia que conheceu na trilha, e tem uma filha. Marina, desolada, faz das criações uma forma de parir a si mesma. Como faria outras vezes.
Explorando os limites do corpo, flerta com o perigo beirando o absurdo. Além das performances, vende fotos de suas peças, dá oficinas e cria objetos transitórios. Múltipla e sinuosa. Apaixona-se novamente, e apesar de seu sucesso na Europa, muda-se para os Estados Unidos. Mas, o trabalho será sempre sua espinha dorsal.
Após doze anos de relação com Paolo, Marina descobre uma traição. Em paralelo, planeja sua maior mostra, a retrospectiva de sua carreira no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, intitulada: “A Artista está presente”. A ideia era reencenar uma antiga peça sua chamada: “Nightsea Crossing”, em que ela e Ulay sentavam-se um diante do outro e se encaravam por sete horas, absolutamente, imóveis. Mas, agora seria diferente, repetiria a ação com visitantes, pelo tempo que desejassem. Ulay foi convidado para o evento, o que ela não sabia era que ele se sentaria à sua frente mais uma vez.
A profecia se cumprira. Marina criou seu próprio Método de ensino e o Instituto Abramovic. Tornando-se a performer mais conhecida no mundo.
“A solidão não se encontra, se faz.”
Marguerite Duras
Em seu livro “A gente mira no amor e acerta na solidão”, a psicanalista Ana Suy reflete a fundura dessa frase. Pensar a solidão como uma agência; e não uma condição passiva, atada ao abandono, ao desamparo que remonta à saída do útero. E se a solidão for uma escolha, um meio de soldar as partes soltas? Para Ana, isolamento é diferente de solidão, pois nele, visamos escapar desse olhar interno. O abismo que nos convoca à escuta dos traumas.
Hoje o termo gourmet para solidão seria solitude, a disposição de estar só e desfrutar a própria companhia sem pesar ou descontentamento. Mas, esse não é um texto para motivá-lo a sair ou viajar sozinho. Quero aprofundar um pouco mais, você vem comigo?
Amor e solidão não são excludentes. Há concomitância em suas vertentes. Na paixão, as fronteiras entre nós e o outro se dissipam, e nos fundimos em um só: a quase-versão-bíblica. E se no furo da fantasia algo sobrevive, há chances de que o amor vingue. É preciso que haja uma fresta entre nós para que eu possa amá-lo, e nesse “entre” que alinha os sentidos, apascento os meus desejos. Na desidentificação com sua imagem encontro certa liberdade. No amor, a fantasia afrouxa seus tentáculos e permite o vínculo. Para a autora, seríamos seres cindidos em nossa solidão que buscam a junção na paixão, e na soma de ambas as forças, gesta-se o amor.
“O amor, mais do que um restabelecimento narcísico, é um furo no narcisismo. Abre um campo de alteridade em cada amante. A gente não ama quando encontra alguém que cabe no nosso ideal, mas quando encontra alguém que nos leva a perdê-lo.”
Ana Suy
Eu temo me perder ao amar o outro. Há pessoas que se moldam a cada parceiro: se é motoqueiro compram coletes de couro, põem bandanas, e vibram em Moto Clubes. Como amar sem trair quem somos? A simbiose que rejeita subjetividades cria relações frágeis, e possivelmente, tóxicas. Para mim, a solidão é intrínseca às relações, e condição à sua permanência.
Olhando meu passado farejo vestígios platônicos. Paixões fulminantes e intangíveis. Homens emocionalmente indisponíveis. E como sempre escavo a causa, cacei o pivô de minha falência amorosa junto a Freud. Foi aí que cheguei à neurose obsessiva. Uma autorregulação para lidar com traumas que nos prende a ciclos infinitos. Refém do pensamento, o neurótico traz em si um desejo impossível, sempre insatisfeito por medo da castração, a não-correspondência. Com isso, impõe altos padrões, protegendo-se na falta. Para ele, a perda é intolerável, assim, tende ao controle para que o outro não lhe escape, e precise se haver com o próprio vazio. A obra “O Impossível”, da artista Maria Martins, traduz muito bem o conflito:
“Miramos no amor e acertamos na solidão, porque no amor encontramos sempre algum desencontro ao vermos que o outro não é nosso reflexo. Essa solidão, da qual pode-se não recuar no amor, é uma solidão necessária para o exercício do amor. Essa solidão à qual me refiro é, então, resto do amor, resíduo de nosso quase encontro com o outro.”
Ana Suy
No filme “O Lagosta”, do diretor Yorgos Lanthimos, em um futuro distópico, as pessoas são proibidas de ficarem sozinhas, e quem estiver solteiro será enviado a um hotel onde terá um prazo de 45 dias para encontrar um parceiro entre os hóspedes, senão será transformado em um animal, de sua preferência, e solto na floresta. No cenário futurista, os atos e gestos são autômatos, mecânicos, ausentes de emoção, voltados aos instintos básicos. O título da trama se deve à escolha do personagem, David elege a lagosta como destino viável.
O regime apresenta extremos, de um lado a opressão do casamento, e de outro, a anarquia do exílio, pois solteiros transgressores resistem na floresta. A irmandade é posta à prova caso se enamorem, fadados à pena de cegueira compulsória.
Na trama, as relações são ocas e opacas, quase miméticas, e as afinidades são medidas por equivalências físicas. A felicidade se torna a tirania de excessos. O não-lugar que o outro ocupa em quaisquer dos lados impede que o amor seja realizável. Uma boa leitura da nossa sociedade em que os laços se esfacelam pela ausência de diálogo, pela colisão de egos inflados.
Você tem medo da solidão? Há meses sou acossada pela insistente pergunta: E se eu terminar (só), lidarei bem com isso? Somos seres gregários e nosso instinto espreita o contato. O escritor e neurologista Oliver Sacks passou quatro décadas, solitário, por gostar de homens. Renunciou aos amores para não ser punido, pois era crime no Reino Unido. Apaixonou-se pela primeira e - última vez – com mais de 70 anos, e a experiência a dois vicejou sua vida antes da partida. Talvez o receio da morte seja o medo de apartar-se de si, a solidão póstuma.
Uma notícia recente desconcertou-me. No Japão, quase 40.000 pessoas morreram sozinhas em suas casas, de janeiro a junho de 2024, conforme dados da Agência Nacional de Polícia. 39,7% das pessoas foram encontradas em um dia, mas 130 foram descobertas apenas um ano depois. E um dos casos mais nefastos ocorreu na província de Hyogo em que a mãe, dada como desaparecida há 10 anos, foi achada mumificada em sua casa, após seu filho contratar um serviço local. Uma década sem visitá-la.
A solidão seria, então, o vácuo que embala a nossa angústia?
No livro “O Banquete”, de Platão, vários filósofos e pensadores se reúnem na casa do poeta Agatão, e passam a discursar sobre o Amor. Segundo Aristófanes, no princípio, havia três gêneros: o masculino, o feminino e o andrógino. Os seres humanos eram esferas duplicadas, possuindo quatro olhos, quatro pernas, quatro braços, etc. O masculino seria a junção de dois homens; o feminino, de duas mulheres; e o andrógino, de um homem e uma mulher.
Sentindo-se ameaçado, Zeus resolve puni-los, dividindo-os ao meio, para impedi-los de se igualarem aos deuses. E com isso, a humanidade, originalmente, una, vê-se condenada à incompletude. Buscam incessantes a sua parte perdida, e muitos morrem devido à saudade de sua outra metade. Apiedando-se dos homens, Zeus forja o eros para fazer a sutura: o enlace pela via do desejo. Assim, o sexo masculino deu origem aos homossexuais, o sexo feminino às lésbicas, e o andrógino aos heterossexuais.
Qualquer semelhança não é mera coincidência, o mito suscita a crença da “Metade da Laranja” em que a pessoa certa estará em algum lugar à nossa espera. Fadados à eterna sensação de falta, movidos ao amor para sermos plenos. Percebe a sutileza do engano? A solidão vista como maldição, e não como estado de contemplação, de celebração a si mesmo.
No livro “O Dilema do Porco Espinho”, Leandro Karnal remete à seguinte parábola do filósofo alemão Arthur Shopenhauer: "Em um dia gelado de inverno, diversos porcos-espinhos se amontoaram muito próximos para evitar que congelassem, graças ao calor mútuo. Eles logo sentiram a dor causada pelos espinhos dos demais, o que fez com que eles se separassem novamente. Mas a necessidade de calor voltou a uni-los e o recuo dos porcos-espinhos se repetiu, de forma que eles ficaram presos entre dois males, até descobrirem a distância adequada na qual poderiam se tolerar melhor, uns aos outros."
A vulnerabilidade é indispensável para tecer relações saudáveis, mas, a intimidade traz em si potenciais dores. É no desconforto desse ajuste que as bordas se arranham, e a carne das diferenças sangra. Presos ao terrível pêndulo, entre o isolamento e o atrito, afiamos nossos espinhos. Talvez por isso, as redes sociais tornam-se um ponto de fuga. Nós caímos na armadilha. Pois, a internet apesar de promover o melhor dos mundos permitindo a interação sem que haja aproximação, ainda sim, deixa lacunas que só podem ser preenchidas com uma real conexão.
"A necessidade de sociedade, que surge do vazio e da monotonia da vida das pessoas, as une; mas suas muitas qualidades desagradáveis e repulsivas, além de seus inconvenientes insuportáveis, mais uma vez as afastam".
Arthur Shopenhauer
Sob o véu da autossuficiência há algo? O que se acende em nós quando as luzes se apagam?
Como conhecer alguém em tempos virtuais? Não entendo a linguagem que deflagra intenções codificadas. Reações ambíguas, curtidas sazonais, frases pálidas. Desisti dos apps de relacionamento em que conversas rendem por dois dias e minguam súbitas.
Quero voltar aos primórdios, roçar as pedras parir o fogo me lançar no jogo olho no olho rir até doer a mandíbula emendar conversas filosofia sonhos fim do mundo perder a noção de tempo-espaço abrir um vinho e sorver o não-dito até vestirem novos sentidos. Não quero catequizar o outro em ritos estéticos ou colonizar meus afetos. Repito como um mantra: não acredito mais no amor. Não acredito mais no amor. No fundo, quero tanto acreditar. Mas, isso significaria me expor à ridícula chance de o encontrar.
Com escuta e poesia,
Noemi.
Sugestões:
Filmes: Medianeras ( MUBI, Apple TV) Na Natureza Selvagem. ( Apple TV, Prime Vídeo ).
Poema “Ritual”, de Liana Ferraz. Livro Sede de me beber inteira.
Imagens:
1)- Fotografia da performance “Relation in Time” (Relação no Tempo), Marina Abramovic e Ulay, 1977.
2)- Fotografia da performance “Relation in Espace” (Relação no Espaço), Marina Abramovic e Ulay, 1976.
3)- Vídeo da performance “Rest Energy” (Energia em Repouso), Marina Abramovic e Ulay, 1980.
4)-Fotografia da performance “Lovers” (Amantes ), Marina Abramovic e Ulay, 1988.
5)- Vídeo da mostra “A Artista está presente”, reencenando “Nightsea Crossing”, Marina Abramovic e Ulay, 2010.
6)- Eu detrás da obra “O Impossível”, de Maria Martins, no Museu de Arte Moderna, no Rj.
Amei o texto amiga!! Esse tema é profundo e você abordou ao seu modo, cheio de arte e reflexão!
Obrigado por compartilharmos a existência, Noemi. Adoro seus textos, mas esse aqui me abraçou o melhor abraço.