“E aí, já casou?” Ela indagou, assim que cheguei ao caixa. Com as broas no balcão, retive o riso que fremia meus lábios. “Não”. Pude perceber a frustração tomando seu rosto enquanto passava a nota. Na mesma semana, encontrei uma colega na rua, e logo após os cumprimentos, ergueu a mão num aceno revolto: “Olha, tô noiva, vou me casar!”
Desde pequenas, recebemos estímulos que evocam certos papeis às mulheres. Para a autora Teresa de Lauretis, seriam tecnologias de gênero, produtos culturais que simbolizam valores, estereótipos, performances e emocionalidades, por meio de músicas, desenhos animados, comédias românticas, propagandas. E ainda que não tomemos ciência de seus intentos, geram em nós os seus efeitos.
No desenho “A Pequena Sereia”, uma jovem sereia se apaixona por um príncipe humano, e recebe a curiosa proposta da bruxa Úrsula: sua voz por um belo par de pernas. Abre mão de sua autonomia, presa aos tentáculos do patriarcado. A sutil inferência de que o ápice na vida de toda mulher é ter um homem ao lado.
A psicóloga e pesquisadora Valeska Zanello criou a metáfora: “A Prateleira do Amor”, um local em que as mulheres se subjetivam pelo dispositivo amoroso, segundo o ideal estético: loiro, branco, magro e jovem. Quanto mais próximas desse padrão, mais suscetíveis a sermos escolhidas, mediando nossa autoestima pelo olhar masculino. É a mesma lógica de produtos num mercado, os rótulos mais caros ficam acima, enquanto os mais baratos ficam abaixo. Eu sei, parece um tanto cruel a comparação, mas fará sentido.
Ilustração livro “A Prateleira do Amor”
Para Valeska, quanto mais distantes do ideal, maiores as chances de nos sentirmos encalhadas na prateleira, preteridas na escala de preferência. Mulheres gordas, negras, indígenas, velhas. O corpo como um capital simbólico. Mas, estar em uma “boa” posição não garante nossa permanência, pois além de podermos engordar, todas (ou quase todas) irão envelhecer. Deste modo, a Prateleira seria racista, gordofóbica e etarista.
Não sei você, mas, em vários momentos, experenciei a sensação de rejeição. Desde muito nova, notei para onde os olhares se voltavam. E não eram em minha direção. A dinâmica não me incluía, e eu indagava o porquê. Na sala de aula, todos os meninos gostavam da loirinha da primeira fila, enquanto cantarolavam ofensas sobre o meu cabelo.
“ É nos olhos do homem que a mulher acredita, enfim, se encontrar.”
Simone de Beauvoir
Na série argentina “A Invejosa”, disponível no Netflix, Vick é uma mulher com quase quarenta anos, estagnada na profissão, cuja maior obsessão é o matrimônio. Altamente competitiva, ela se desestabiliza após a separação, e se ressente com as amigas, que lograram a tão sonhada aliança. Apegada a fantasias românticas, resta a dúvida: quer se casar com o homem ou com o casamento?
Devido às feridas emocionais advindas do abandono paterno, projeta inseguranças em pessoas indisponíveis. Vick cai em um ciclo de autopiedade, moldando-se aos homens para ser aceita. Isso fomenta a rivalidade feminina, vendo outras mulheres como ameaças à sua saída da prateleira.
No livro, Valeska menciona a segunda forma de subjetivação, por meio do dispositivo materno, cuja base é o heterocentramento. Nele, as mulheres aprendem que devem priorizar necessidades e anseios dos outros, ao invés de seus próprios interesses. O cuidado atrelado ao feminino, produzindo sobrecarga e esgotamento. Mas, adentraremos esse assunto em newsletters futuras. O letramento de gênero é o pilar para que as mulheres canalizem sua libido para além das relações amorosas e da maternidade.
“Na nossa cultura, homens aprendem a amar muitas coisas, e mulheres, a amar os homens.”
Valeska Zanello
O amor é identitário para as mulheres, sendo assim, não estar em uma relação significa fracassar. E isso nos torna vulneráveis a suportar o inaceitável para sermos admitidas em nossa mulheridade. O anel como significante de nossa existência.
Você realmente deseja se casar? Ou o conceito foi introjetado em doses homeopáticas, ao longo dos anos, antes que pudesse racionalizar?
O filme “Priscilla”, dirigido por Sofia Coppola, inspirou-se no livro “Elvis e Eu”, de Priscilla Presley, e narra sua vivência com o polêmico astro do Rock. Quando o conheceu, ela tinha 14 anos, e Elvis, 24. Priscilla morava numa base militar americana, na Alemanha, e o cantor estava lá, temporariamente. Após este retornar aos EUA, mantiveram a relação à distância, até ela se mudar para a mansão do ídolo.
“Aprendemos que só somos desejadas se temos alguém nos desejando. Então, muitas vezes, o que buscamos não é o amor, mas a sensação de que fomos escolhidas.”
Valeska Zanello
Já casados, o conto de fadas começa a ruir. Aprisionada numa gaiola de ouro, Priscilla vive à espera do marido, que parte em longas turnês. Um homem infiel, manipulador e viciado. Ela muda a aparência, vestimentas e hábitos, a fim de manter-se sua elegida. No meio de tantas mulheres, ele a escolheu, como dispor de tamanho privilégio?
Já viram a nova onda das “Tradwives”? Mulheres retomam o ideário conjugal dos anos 50, dedicando-se, integralmente, aos filhos, ao marido e aos afazeres domésticos. Em grande parte, influenciadas por discursos religiosos de submissão. Acordam às 4 h da madrugada, fazem babyliss, e vão à cozinha preparar pães integrais do zero. Sempre impecáveis e sorridentes, ostentam um estilo de vida que captura a atenção do público. Como dão conta de tudo?
Elas vendem a ideia de felicidade plena e acessível, contudo, há um evidente abismo social. Segundo dados do IBGE, divulgados no final do ano passado, quase 7 milhões de mulheres entre 15 e 29 anos, não estudavam nem estavam ocupadas em 2022. Desse total, 2 milhões disseram abrir mão de atividades para cuidar da casa ou para auxiliar parentes. Não havia opção. As tradwives não trabalham fora, mas, muitas delas, monetizam sua vida em registros diários, ou seja, não ficariam desamparadas caso a relação findasse. Há o privilégio da escolha.
O casamento é bem mais vantajoso para os homens. A antropóloga Mirian Goldenberg entrevistou homens e mulheres, acima dos 50 anos, e chegou à conclusão de que mulheres nessa idade prezam a independência e desejam recuperar o tempo perdido, enquanto homens priorizam o aconchego familiar. E é muito comum que ao se separarem, elas prefiram continuar sozinhas, e os homens busquem novas parceiras que ocupem o posto.
O célebre fotógrafo Sebastião Salgado viajava o mundo, a maior parte do ano, enquanto sua esposa Lélia ficava em casa cuidando dos filhos e editando seus livros. Atrás de um grande homem há uma grande mulher ou atrás de um grande homem há uma mulher fazendo todo trabalho invisível?
E não esqueçamos das “Trophy Wives” ou “Esposas Troféu”, uma variação das esposas tradicionais, que usam beleza e juventude como investimentos. Precisam estar bonitas e bem-cuidadas para adornar o parceiro. Um ajuste conveniente, mas, não nos enganemos, quem domina a relação é quem detém o dinheiro. O homem supre a mulher enquanto a exibe, reafirmando-se junto a seus pares. Não os julgo, pois se o combinado é a troca de interesses, ambos saem ganhando.
Tem quem queira conquistar uma mulher forte. Não para estar com ela. Mas para anulá-la. O fetiche é pela carcaça. Pela cabeça pendurada na sala de estar.
Liana Ferraz
No segundo episódio da série “Rugido”, disponível na Apple Tv, uma modelo famosa conhece um sujeito abastado e se apaixona, perdidamente. Tudo parece perfeito, até ele instalar uma prateleira na sala, e convidá-la a subir. Encantada, ela larga sua carreira para estar ali. Mas, a adoração dura pouco, e apesar de ansiar a fuga, esmorece diante do salto, adia sua partida. Torna-se um acessório, um apêndice desnecessário, que o marido, paulatinamente, despreza.
Há uns anos, eu me relacionei com um homem inteligente, e aparentemente, desconstruído. Aí, o fulano sugeriu que eu largasse o emprego, e me mudasse, pois me sustentaria durante a transição. Um fofo, não é mesmo? Eu poderia ficar sob um teto todo dele escrevendo – tranquilamente – enquanto o provedor bancaria meu conforto. - Mas, por que você não se muda? indaguei. Disse que afetaria seus planos, com a queda de rendimentos. E eu já ia me esquecendo: estipulou um prazo para o casamento. Afinal, o que importavam eram os seus termos. Ao saber da proposta indecente, senti que a minha liberdade sempre viria à frente do amor.
Fiquei atônita com uma descoberta. Segundo estudos recentes, realizados na Universidade de Estocolmo, na Suécia, não é o espermatozoide mais forte e veloz que irá fecundar o óvulo. Por meio da quimiotaxia espermática - de atração e repulsão - além, da interação molecular, revelou-se que é a membrana do óvulo que decide qual espermatozoide fará a passagem. Ela se abre ao escolhido. Dessa forma, é o óvulo que garante o parceiro mais adequado à confecção da vida. E por tanto tempo, compramos outra narrativa.
"Os óvulos humanos liberam substâncias químicas chamadas quimioatraentes, que deixam uma espécie de trilha com 'migalhas' químicas que os espermatozoides seguem para encontrar óvulos não fertilizados”.
John Fitzpatrick - Autor do estudo
Mas como resgatar o protagonismo?
Escolhendo não permanecer em relações amenas por medo de não encontrar coisa melhor. Escolhendo pontuar meus incômodos antes que eles me açoitem. Escolhendo traçar os limites do imperdoável, e honrá-los. Escolhendo não sepultar meu espírito para que o outro se sinta bem. Escolhendo partir quando a própria ausência for - insuportavelmente - maior que a presença de alguém.
pequenas. decisões. diárias. repetidas. incessantemente. grão. a. grão.
um hobby, uma música, uma viagem sozinha, um café com amigas, uma escrita, um vinho, uma sessão de terapia, um projeto novo, uma trilha, um minuto de silêncio, olhar o céu, ver gente passar, comer algo gostoso, um livro na rede, o mar no corpo.
Quando desloco o meu foco para dentro,
posso, enfim,
Escolher a vertigem.
Cena da Série “Rugido”
Com escuta e poesia,
Noemi.
Sugestões:
Série: “A Maravilhosa Srta. Maisel” - Prime Vídeo.
Filme: “As Sufragistas” - Prime Vídeo (aluguel) e Apple Tv.
Salvando pra ler sempre!
Que emblemático este teu texto reflexivo neste finalzinho de ano. É verdade, também li um artigo científico sobre o tema: é o espermatozóide o capitulado e embrenhado pela capa ovular. Que narrativa incrível mesmo de se entronizar! Sigamos, Noemi! Boas Festas! Bjs💕🎄🎈🌀