Fecho as páginas e um espasmo elétrico percorre o meu corpo. O espanto salta minhas pálpebras como de um trampolim. O livro é “Eu nunca mais vou te chamar de pai”, de Caroline Darian, a filha de Gisèle Pelicot, mundialmente conhecida como a mulher drogada por seu marido e submetida a estupros sucessivos por quase dez anos.
( Aviso: conteúdo sensível ).
Você deve ter lido sobre o caso que aturdiu a França no ano passado, com o julgamento de Dominique Pelicot, um senhor corpulento de cabelos grisalhos, casado, pai de três filhos e avô. Um ex-eletricista com inaptidão empreendedora que assistia aos jogos com os netos, em outras palavras, era um homem comum. As maiores violências costumam vir dos mais próximos, pois eles usam nossas fragilidades como arma.
Tudo mudaria após uma ligação. O antes, um borrão nos olhos da memória. A família foi informada que o pai havia sido preso em um supermercado por fotografar embaixo da saia de três mulheres. E ao apreenderem seus dispositivos eletrônicos, a descoberta que fizeram foi alarmante: o lado sombrio e perverso do homem que mais amavam. Dominique registrou mais de 20.000 fotografias e vídeos de sua esposa inconsciente sendo abusada por desconhecidos ao logo de quase uma década.
No livro, Caroline retrata a ambiguidade que a atormenta, de um lado o ódio e a repulsa pelo crime brutal sofrido por sua mãe e de outro o luto pelo amor nutrido durante uma vida. Ela se sente culpada por não ter desconfiado, uma vez que sua mãe apresentava sinais de confusão mental. Mas, como desconfiar do inimaginável?
“Quando acordo, volto ao pesadelo: o agora. E sinto saudade de meu pai. Não daquele que está diante dos juízes; mas do homem que cuidou de mim por quarenta e dois anos. Sim, eu o amava muito antes de descobrir sua monstruosidade.
Caroline Darian
Sua mãe entra numa espécie de negação em que ainda se vê sob os domínios de seu algoz, ele envia-lhe cartas da prisão para que seus tentáculos continuem tecendo armadilhas. Gisèle nega porque talvez a verdade completa a fragmente. Despedace suas partes erguidas com afinco por tanto tempo. Sua resiliência após um evento tão desolador e a decisão de manter o processo público, mesmo sabendo o caos que adviria, denotam a potência sob a fragilidade aparente.
Mas, quando pensa que não pode piorar, Caroline se depara com uma notícia avassaladora: fotos suas são encontradas nos arquivos do pai, dormindo de calcinha em um quarto que não reconhece e outras em que está nua. O pai nega qualquer ato libidinoso em relação à filha. E o não saber mantém a ferida aberta no limbo em que memórias de infância se fundem a memórias furtadas pelo sadismo paterno. A única sutura possível é através da palavra.
“Como ele pôde me fotografar em plena noite sem me acordar? De onde vem aquela calcinha que estou usando na foto? Será que ele também me drogou? Pior, será que além dessas fotos ele também abusou de mim?”
Caroline Darian
Além de submeter a própria esposa a violências repetidas e difundi-las na internet, ainda a expôs a doenças, inclusive ao HIV, pois alguns dos estupradores eram soropositivos. Dominique tinha um ritual, postava anúncios em um site onde atraía os homens que estacionavam à distância, e se despiam na entrada da casa. A mulher como um objeto a ser disposto para atender os seus prazeres mais sórdidos.
Mais de setenta homens se dispuseram a entrar em uma residência com uma mulher visivelmente desacordada sob o aval do marido, sem qualquer senso ético ou moral, levados apenas por seus instintos. Com idades entre 22 e 71 anos, eles se vangloriam de praticar o “candaulismo”, prática sexual que consiste em assistir ao parceiro fazendo sexo com outra pessoa. Um deles alegou que Gisèle estava consciente, pois havia acenado para que ele entrasse no quarto. Outros afirmaram desconhecer a sua condição no momento do ato, sugerindo terem sido ludibriados por Dominique, sem demonstrar qualquer remorso ou culpa em relação à vítima.
No julgamento, 50 homens foram identificados e condenados, com sentenças de 3 a 15 anos de prisão, mas se estima que 72 tenham participado. Dos 50, 17 decidiram recorrer. As penas aplicadas são de: estupro e tentativas de estupro com múltiplas circunstâncias agravantes; estupros coletivos; agressões sexuais em grupo; violação da intimidade da vida privada por captação, gravação ou transmissão da imagem de uma pessoa com caráter sexual; e posse da imagem de um menor de idade com caráter pornográfico. Dominique foi condenado a 20 anos, pena máxima, e decidiu não recorrer para poupar Gisele de mais um trauma, empático não é mesmo? Incrível como ele distorce a narrativa para simular alguma dignidade.
O que motivou a ousadia em cometer tais crimes sem pestanejar? Em primeiro lugar, a cumplicidade masculina, o escudo social detrás da irmandade em que a omissão e o silenciamento permeiam o contrato invisível, selado desde o berço. Há um acobertamento mútuo que marcara e dissimula condutas ilícitas.
Em seu livro “Masculinidade e Dispositivo da Eficácia”, a psicóloga e doutora em Filosofia Valeska Zanello, menciona a metáfora da “Casa dos Homens” criada pelo sociólogo francês Daniel Welzer-Lang, que seria uma casa simbólica com vários cômodos em que os jovens seriam testados por homens mais competentes, ricos ou experientes profissional e sexualmente, contudo, as provas nunca teriam fim. Os homens são validados por seus pares quanto à virilidade sexual e laborativa, e os que não se curvam aos moldes são excluídos do pacto silente.
Ilustração de Alexandre Nadal,
livro “Masculinidade e dispositivo da Eficácia”,
de Valeska Zanello.
No dispositivo de eficácia, o homem busca se autoafirmar em relação ao status profissional, quanto mais bem-sucedido mais valor perante os demais, e isso também se aplica ao desempenho sexual, deve-se demonstrar disposição permanente ainda que esteja comprometido ou que esteja sem vontade. Não se pode rejeitar oportunidades.
E isso atrelado ao vício na pornografia deturpa o sentido do próprio sexo, ao se emular prazeres artificiais. Além disso, a raiva se torna a única emoção permitida, reprimindo sentimentos até eclodirem de modo desmedido. Eu não lembro de ter visto meu pai chorar, nem mesmo quando minha mãe morreu. Sei que isso o abalou profundamente, porém, não conseguiu externalizar. A dor empilhada sobre as perdas. Afinal de contas, o que é ser homem realmente?
“Eu quis provar minha virilidade. Eu duvidei da minha validade. Na insanidade virtual. Eu cuido pra não ser muito sensível. Homem não chora, homem isso e aquilo. Aprendi a ser indestrutível. Eu não sou real.”
Tiago Iorc
E quem não se recorda do rapper Diddy acusado de drogar diversas meninas e mulheres para cometer abusos e mantê-las “obedientes”, agredindo-as verbal, emocional e sexualmente nas orgias em suas mansões, com outras celebridades? E com toda a sua influência restou condenado apenas por transporte de prostituição, sendo inocentado das acusações mais graves de tráfico sexual e extorsão. No filme “Pisque Duas vezes”, dirigido pela Zöe Kravitz há uma menção a esse universo macabro em que o corpo feminino é esvaziado de sua humanidade.
Ilustração: Alamy.
A Masculinidade precisa ser revista urgentemente. Segundo a pesquisadora inglesa Laura Bates há um movimento de radicalização misógina de meninos e adolescentes promovida pelos algoritmos da internet, nas principais redes sociais, que carecem de regulamentações rígidas, e se esquivam da responsabilidade.
"Temos a ideia de que os jovens são mais progressistas e liberais, com um alto grau de tolerância social e mais respeito pelas mulheres. Mas o que vemos agora, pela primeira vez na História e em diferentes estudos, é que as atitudes mais misóginas, antiquadas e obsoletas em relação às mulheres e às meninas se tornaram mais comuns entre jovens do sexo masculino".
Laura Bates
Não é por acaso a aclamação da minissérie britânica “Adolescência”, gravada toda em plano sequência - numa única tomada - com apenas quatro episódios. Nela se desenrola um drama familiar desencadeado com a prisão do adolescente Jamie pela morte de sua colega de classe.
A série atravessa temas como: machosfera, ciberviolência, ideais misóginos influenciados por figuras como Andrew Tate, além dos incels que seriam a abreviação de “celibatários involuntários”, homens que se consideram incapazes de manter relações sexuais com mulheres, culpando-as por seu fracasso. O boom de informações que degradam mulheres sendo levados às últimas consequências.
E qual seria o papel da família e da sociedade nessa desconstrução da masculinidade?
Porque não adianta os pais educarem, quando as escolas e meios digitais não estendem a vigilância e o controle para que a violência não se propague. Divulgação de nudes e deepfakes em grupos de WhatsApp, chantagem emocional promovendo tortura de meninas, incitação de ódio às minorias. Não basta proibir é preciso desengajar os movimentos de incels e redpills, em que homens destilam sua repulsa gratuita por não aceitarem a nova onda progressista de mulheres distanciadas do modelo androcêntrico, que se recusam a receber migalhas de afeto só para ostentar um relacionamento.
“A masculinidade também se constrói por meio de um processo de embrutecimento: seja na relação com o próprio corpo e emoções, seja na relação com outros homens e com as mulheres.”
Valeska Zanello
A masculinidade não é rígida, sólida. Um aglomerado de performances e regras pré-definidas. E é a partir do diálogo regado à escuta ativa e punição aos meios difusores de desinformação que talvez seja possível um ponto de encontro, de conexão. Uma masculinidade que possa chorar no ombro do outro, que não sinta vergonha de pedir ajuda e nem de contar sobre a traição sofrida ou sobre a insegurança com a própria imagem. Que ajude nas tarefas diárias, divida os cuidados, e se posicione contra o machismo de seus amigos. Que faça um sexo real, natural, orgânico.
Um homem broxável, maleável, permeável.
Que ultrapasse as risadas e piadas superficiais
e adentre o íntimo do humano que reside
sob as cascas de um patriarcado
que não se sustenta mais.
Com escuta e poesia,
Noemi.
Sugestões:
Série: Machos Alfa, Netflix.
Filme: Close, Netflix, Prime Vídeo.
Documentários: O silêncio dos Homens; A máscara em que você vive (The Mask You Live In). Ambos disponíveis no Youtube.
Música: Masculinidade, Tiago Iorc.