Há uns dias assisti ao documentário “Eu sou: Celine Dion”, e fiquei deslumbrada com a tenacidade dessa mulher. A cantora foi diagnosticada, em 2022, com a Síndrome da Pessoa Rígida, uma doença neurológica - extremamente rara - que acomete 1 em um milhão, e afeta o sistema nervoso central, atingindo, sobretudo, o cérebro e a medula espinhal, provocando espasmos musculares.
Ao descobrir sua condição, Celine se fechou, desmarcou turnês e se isolou com os filhos a fim de se dedicar à recuperação. A Síndrome repercutiu em sua voz, pois além de sofrer com espasmos nas cordas vocais, o enrijecimento dos músculos tolheu a força para que alcance os agudos atômicos de suas canções.
Antes de ser acometida pela Síndrome, minha voz era o que conduzia a minha vida. Eu só a seguia. “Você mostra o caminho, e eu sigo.” Eu aceitava isso, porque eu estava me divertindo.
Celine Dion
Ela revisita seu depósito de memórias e adentra instâncias sensíveis. Se o pilar de sua identidade reside na voz, o que sustenta a falta atroz de si mesma? Quem será Celine Dion se nunca mais puder cantar? Ou se cantar de um jeito distinto? O luto de quem somos é uma dor que se infiltra nos ossos. Quando caem todos os adereços o que nos resta no centro?
Celine não se acovarda, ela se mostra humana, vulnerável. Ela não se resigna ao diagnóstico nem nega a realidade, mas atravessa a tragédia com elegância, e principalmente, resiliência. Eu perdi coisas que, até hoje, não ouso dizer em voz alta, e vê-la assim, audaz diante do acaso, amansou os meus próprios traumas. Celine continua sendo.
Embora, muitas vezes, não pareça, a identidade é elástica, maleável. Mas, nos atemos a cauções de permanência. Todos nós temos dois tipos de identidade: a pública e a privada, a primeira, seria a que partilhamos com o outro, enquanto a segunda se refere ao espaço de imaginação particular onde coincidem - livremente - ideias, pensamentos e afetos íntimos. Sedimentamos nosso self pela ilusão de segurança. Porém, ao nos apegarmos a papeis, talentos e títulos nos pomos em perigo, pois na perda do objeto que alicerça, esvazia-se o sentido de nossa existência.
Talvez a solução seja pulverizar nossa identidade, vascularizar seus ramos a fim de que ela se expanda além de nós, dentes de leão soprados ao ar, sementes kamikazes. Ou talvez, devêssemos penetrar as entranhas até tocar o nervo de nossa essência.
Para o psicanalista francês Jacques Lacan, a identidade é uma construção social, simbólica, formada por meio da identificação com o outro. Uma busca voraz ligada ao desejo, interminável. E no caso de Celine, sua subjetividade se projeta no olhar desse outro, nas expectativas de que sempre será a mesma. Mas e se formos forçados a mudar, o que fazer? Desenraizar é voltar às origens, ao branco do não-ser.
Para Lacan, no processo de identificação, ocorreria o Estádio do Espelho, com suas três fases: a primeira, em que há um estranhamento da criança diante de seu reflexo. Na segunda, a fase transitória, ela descobre que esse outro no espelho não é um outro real, mas uma imagem, confundindo-se à mesma. E por fim, reconhece a imagem como sendo dela, ordenando, assim, sua identidade. Ela se apropria da imagem de seu corpo, estruturando seu “eu”, findando a vivência do corpo despedaçado. Pois, antes dessa etapa, o pequeno não experimenta seu corpo como uma unidade, e sim, como algo disperso. Avulso.
Eu sei, parece confuso o raciocínio, mas pensa comigo: e se esse corpo despedaçado que foi integrado, despedaçar-se novamente? Conseguimos retomar as formas ou colamos as partes, indefinidamente?
Isso me fez lembrar de uma exposição que visitei, em São Paulo, sobre o pianista, músico e maestro João Carlos Martins, que a partir dos 3 anos de idade sofreu com desmaios e convulsões periódicos, até surgir um tumor em seu pescoço, que o levou a uma cirurgia malsucedida. Anos mais tarde, quando já fazia concertos notou movimentos involuntários em suas mãos, e essa sensação se repetiu em várias ocasiões.
Tempos depois, caiu em Nova Iorque, enquanto jogava futebol, e uma pedra penetrou seu cotovelo, perfurando seu nervo unhar, e por isso, seus dedos começaram a atrofiar, impelindo-o a fazer uma cirurgia e a usar dedeiras de aço em seus eventos musicais.
Após um período, teve embolia pulmonar e precisou pausar a carreira, voltando a praticar, lentamente, mudando a posição de suas mãos, com os dedos esticados. Mas essa mudança lhe ocasionou uma lesão por esforço repetitivo, o LER, passando por diversos tratamentos sem sucesso. Ah, você pensa que acabou? Carlos sofreu um assalto na Bulgária, e foi atingido por uma barra de ferro na cabeça, que provocou uma lesão cerebral. Devido às dores lancinantes em seu nervo fez outras cirurgias para pôr cartilagens.
Então, passou a tocar apenas com a mão esquerda, pois a direita estava muito debilitada. Após diversas cirurgias frustradas e proibições dos médicos, decidiu virar maestro, mas não desistiu de recuperar os movimentos. Iniciou um tratamento com toxina botulínica e alongamento das estruturas músculo-tendinosas, além de cirurgias, obtendo uma significativa melhora. Contudo, os efeitos se esvaíram com o tempo. Mais uma operação, e livrou-se das dores persistentes, mas não conseguiu mais abrir os dedos.
Em uma das áreas da exposição, havia uma sala escura com sua projeção, sentada ao piano, interagindo conosco. Carlos dizia ser um prazer nos receber num concerto particular, encenando como fazia outrora. E ao final, fui às lágrimas, completamente fascinada com sua profunda devoção à música. Todos os seus poros minavam paixão, feito orvalho no manto das folhas.
“Eu ainda me vejo dançando e cantando. E sempre acho um plano B e C, sabe? Eu sou assim. Se não posso correr, eu ando. Se não posso andar, eu engatinho. Mas não vou parar. Não vou parar.”
Celine Dion
A identidade é adaptativa. Não creio que mingue a despeito das perdas, mas que se expanda no corte, caudas de lagartixa abrindo caminho nos dentes;
O que fui não me vincula. O que sou não me torna escrava.
Sou a lava sob o solo,
que flameja insistente,
apesar da superfície
calma.
Noemi, que edição primorosa.
Enquanto lia, lembrei de “Luto e Melancolia” de Freud. Claramente, uma associação nada livre, pois esse despir-se é como morrer para si mesmo e, principalmente, morrer para o que se pensa sobre si mesmo. Viver é talvez a longa elaboração desse luto do que pensamos sobre nós mesmos. Haverá um tempo em que não se falará mais em identidade e personalidade, apenas a mudança sobreviverá. Apenas a mudança.
Obrigada pelo texto.