Onde nascem as ideias? #37
De onde surge a ficção? O devaneio veio à tona após iniciar a leitura de “A obrigação de ser genial”, da argentina Betina González. A autora reflete sobre a origem do impulso criativo, a ideia motora que fomenta o ofício da escrita. De que lapso desponta o germe que nos fisga? Até que ponto dissocio do que escrevo? Há uma distância realmente segura? Será que me aparto ou me reparto nas fibras das palavras paridas?
“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu.”
Clarice Lispector
Não sei bem de onde vem minha inspiração. Se fosse eleger entre o big bang e a versão bíblica, seria essa, pois creio que ela vem da voz. Do haja. A voz que antecede a nossa existência. Às vezes, irrompe uma frase no banho e corro até o celular, respingando a casa. Preciso anotar antes que a ideia seque. Em outras, sinto que há algo ali, pulsando: um nome, um traço, um rosto. Algo solto que me orbita, clemente por assentar no corpo. Na última letra disposta, a pele recobre minha carne exposta, posso voltar ao mundano. Olho a pedra e vejo pedra, como diria Adélia. Até ser arrebatada de novo ao ver uma senhora atravessando a rua. E de repente, ela também me atravessa, sou avenida para a pressa de pôr para fora o que eu nem sabia que tinha. Ficcionalizamos a vida para que a realidade não nos esmague. Para que, assim, possamos inventar novas margens.
“Sempre foi mais fácil para mim pensar na escrita como um ato de posse: ser capturada por uma voz que me dita de um lugar além de mim.”
Betina González
O texto de hoje nasce da seguinte demanda: eu poderia viver sem escrever? Eu realmente tenho essa escolha?
Entre o escritor e o leitor há uma bruma. Algo místico se instaura quando olhares se atentam às páginas. A leitura não se faz sozinha, ela traz junto de si as origens de quem cria e as miragens de quem se apropria. A escrita se desdobra – híbrida - no assombro do encontro. Espero que este conto incuta perguntas que adiem nossa despedida.
“Abri a boca, ausente de dentes, o vazio da palavra fermentando a língua. Depois do incidente, o antes tornou-se uma foto esmaecida na estante. Entre o que sou hoje e o que eu era, a espera.
Minha mãe alisava a barriga como se dentro um feto calcificado resistisse. No sofá, as pernas listradas por veias salientes. O cheiro de tempero incrustado na pele, o ranço de velhice nos cantos, a marca dos anos nas superfícies.
Meu olhar vigiava seus passos dormentes, aflitos pela febre das calçadas. Havia câmeras instaladas, extensões de meu olhar, atentas a suas caçadas. Da última vez, ela bebeu detergente. Cheguei no exato instante em que seus lábios verteram o líquido transparente. Uma parte de mim quis que ela engasgasse ou se afogasse no mar de espumas e lágrimas. Mas corri e detive seu ímpeto destrutivo.
Contratei a Lourdes depois de quase morrer envenenada. Sim, ela pôs chumbinho no bife à parmegiana. O meu favorito. Disse que havia ratos na casa, precisava exterminá-los. Salivei tanto que engoli um litro de água de uma vez só, a baba escorrendo no queixo, densa, enquanto o estômago queimava, queimava. Liga pra emergência, mãe. Faz alguma coisa.
Dessa vez, ela obedeceu.
Pela manhã, encarei o espelho com o afinco de quem teima, buscando os genes que nos algemam, traços da linhagem desfeita, frágeis fios que enredam nossos caminhos. Sinais do implacável destino. Desde nova, tenho rugas na borda dos olhos, como se a dor selasse futuro ao meu corpo. O nariz harmonioso herdei dela. Única parte que não detesto em meu rosto. O que mais me incomodava era o sorriso gengival com dentes miúdos, quase infantis. Pelo menos, não posso reclamar disso agora. Quando menina, eu a espiava enquanto ela se trocava. A camisola branca com bordados na lateral, os cabelos caindo em ondas, e um sorriso envaidecido na cara, como se soubesse que estava sendo observada.
Ela sempre foi bonita. Meu pai se gabava nos jantares de como insistiu por seis meses até que ela aceitasse sair com ele. Entre vários pretendentes, escolhera o mais decadente, Lúcio Valente, que a trairia pelas próximas décadas. Um homem de estatura modesta, pernas arqueadas, um bigode ralo sobre os lábios mirrados e entradas visíveis na testa. Não foi um péssimo pai. Nas raras ocasiões em que ficava em casa, inventava brincadeiras com o que via pela frente. Imitava vozes de pessoas conhecidas e contava piadas que só ele entendia. Mas, eu ria mesmo assim. Era bom tê-lo perto da gente.
Minha mãe o encarava da sala quando ele saía com sua bolsa a tiracolo, sabia que só voltaria após alguns meses. Uma tarde, chamei por ela, enquanto fazia a lição da escola. Nada. O silêncio vibrava nas quinas, sismos subterrâneos que ruíam fundações tão débeis. Comecei a ficar preocupada, corri até a porta, um alvoroço mais adiante. As vizinhas cochichavam entre si, atordoadas, um círculo se fechava, mas não via o epicentro do drama. Aproximei-me do local, e para meu espanto, lá estava ela, agachada no chão, totalmente despida.
Por um átimo, duvidei da cena. Parecia tão absurda. Só me lembro de puxá-la com minhas mãozinhas e levá-la para casa. Ela chorava, não um choro de adulto, um choro de criança que se perde dos pais. Eu me senti um pouco mãe dela. Findou-se ali a minha infância.
A ciência de meu pai se deu por telegrama. Chegou dias depois com chocolates e a promessa de viajar menos. É incrível a força das promessas irrealizáveis. A única que honrou em vida foi largar o cigarro. Já as mulheres, sorveu-as até o último trago.
Nós três sentados à mesa, a mãe com seu avental verde rasgado na ponta, as alças gastas pelo afeto diário. No descuido da presença, eu ia ao quarto conferir se a mala jazia sobre o armário. Minha alegria durou oito dias. O recorde de sua estadia. Quando ela soube da partida, navalhou o próprio rosto e espalhou o sangue na bancada da cozinha. Ele se levantou em silêncio, deu um longo suspiro, quase um assobio, e voltou com a mala nas mãos. A última vez que o veria antes do velório, anos mais tarde.
Seu vício com remédios deu uma guinada. As supostas dores nas costas velavam seu anseio por morfina. Pedia receitas a uma amiga, e muitas vezes, quem se humilhava indo ao consultório era eu. A filha prodígio, eles diziam. Como é independente. Sua mãe te criou muito bem. Eu sorria enquanto eles cuspiam devoções açucaradas para a mulher que não levantava da cama desde a semana passada.
O amor para mim era uma espécie de obrigação, como tomar banho ou escovar os dentes. Nunca foi uma pessoa ou um estado, parecia algo criado com o intuito de me punir. – Você ama a mamãe, Silvia? O não saltava à garganta, mas como dizer que não amo quem me pôs no mundo? – Amo sim, mãe. – De que tamanho? – Infinito.
Infinitas eram as horas que eu contava até poder sair de casa. De uma vez por todas.”
(…)
(Se você deseja saber a continuação dessa história, digita SISMO nos comentários. Rememorando os folhetins, deixo-lhes as lacunas. E assim como vocês, ainda não sei o que irá acontecer. Até a próxima semana!)
Que tal me ajudar a escolher o Título? Darei três opções ao final, conto com a participação de vocês para eleger o que melhor dialoga com a trama.
Com escuta e poesia,
Noemi.