Estávamos relaxando em casa, nas tardes infinitas após as aulas, quando uma voz despontou no portão. Da janela, vi o urso de pelúcia que se avolumava nas mãos do vendedor. Sorri avantajado. Minha mãe conversou com aquele senhor, e disse que não tinha condições de comprá-lo. Então, o homem sacou uma pequena bandeja do bolso e pediu a aliança de minha mãe emprestada, com o pretexto de analisar seu valor. Ela retirou o anel e dispôs sob sua vigília. O homem deitou a aliança na bandejinha, aqueceu o seu corpo reluzente, e na cínica alquimia, o anel se liquefez.
Os detalhes aquarelam na memória, agarro as bordas da história até fincar as minhas unhas bem fundo. Em segundos, a aliança se tornou uma poça no recipiente. Fitamos a cena, atônitas, enquanto o objeto se dissolvia. Não um objeto qualquer. Mas, o símbolo de seu matrimônio. Ela não disse nada. Não reclamou da má-fé do sujeito. Apenas laçou o gigante urso, pousando-o em meus braços. Naquele momento, entendi o amor e os seus sacrifícios. Renúncia que se anuncia nos silêncios.
Minha mãe se chamava Helena, e este nome de origem grega significa “a reluzente, a resplandecente.” Está diretamente relacionado ao fogo, à luz ou ao brilho intenso. E assim, ela era. Sua risada era capaz de incendiar uma floresta inteira. Aquele urso foi o liame. A liga secreta. Não fomos tão próximas como gostaria, mas a lembrança ecoa em minhas marés como um náufrago se agarra aos destroços do navio.
O ouro é um metal que não oxida. Não enferruja com o tempo. E acho que algumas reminiscências são assim, não se corrompem por mais antigas que sejam. Elas sobrevivem aos ímpetos da existência. Perdi a minha mãe na adolescência, ela não resistiu aos picos de pressão arterial, somado a um tumor cerebral. Foi a partir daí, que a morte se tornou familiar para mim. Uma perda sempre cauteriza algo dentro de nós. Por mais que resistamos aos danos, não somos mais os mesmos.
Soube há pouco tempo que pinturas do Egito Antigo, de 3.000 a.C, retratam o anel como símbolo de união entre dois amantes. Os egípcios elegeram o círculo cíclico, geralmente de couro, afim de evocar o amor eterno. Desde a Antiguidade, o objeto sela um compromisso perene, mas foi na Grécia que se firmou a tradição com a escolha do dedo anelar, pois, segundo eles, haveria uma veia, a amoris, que levaria diretamente ao coração. Os romanos seguiram esta tendência, contudo, os noivos presenteavam suas noivas com anéis de ferro, dando origem à cultura de metais preciosos nos casamentos. Foi apenas em 860 d.C, após um decreto do Papa Nicolau I, que o Anel de Noivado se incorporou à tradição cristã, sendo visto como símbolo de cumplicidade, fidelidade e amor entre o casal.
E quanto aos outros afetos? Que signos externam a sua presença? Garimpo sinais em conversas, conselhos, encontros. Indícios que apontem longevidade, mas não há lastro possível. Apenas pactos inaudíveis ditos entre dentes, confessos em gestos imprevisíveis, é na promessa do pra sempre que a gente vive.
Vão-se os dedos, ficam os anéis. É nessa inversão que a converto. Que a faço caber em mim, assim como nela me fiz. Olho a caixinha minúscula sobre a mesa, retiro três alianças, frágeis como bambolês em meus dedos finos. O pediatra e psicanalista inglês Winnicott conceitua o “objeto transicional” como sendo algo que está na divisa entre o dentro e o fora, e que a criança faz uso para demarcar os seus próprios limites, e assim, suportar a ausência materna. Um paninho, um brinquedo, qualquer coisa que mostre ao pequeno que ele e a mãe são sujeitos distintos, e que o acalente nessa falta, tornando-se, então, fronteira.
“Você tem paz, Clarice? - Nem pai, nem mãe. - Eu disse paz. - Que estranho, pensei que tivesse dito pais. Estava pensando em minha mãe alguns segundos antes. Pensei - mamãe - e então não ouvi mais nada. Paz? Quem é que tem?”
( Clarice Lispector - em entrevista )
A lição de minha mãe é certeira. Relações não são medidas por rótulos ou nomenclaturas. O que engendra conexões reais é o quão dispostos estamos a ceder. E vou ser sincera com você, nem sempre quero ceder. Às vezes, só desejo me proteger. Mas, o calor da segurança é o mesmo que consome os vínculos mais preciosos.
Chego à conclusão de que o amor não é o urso,
o prêmio último,
nem o risco da bandeja,
o amor é a entrega.
( Um pouco da sua risada, e minha voz, entrelaçadas. )
Que lindo!