O que ela diria se me visse aqui? #36
Há uns meses deparei-me com uma mensagem. Não uma mensagem qualquer, era a minha antiga professora de Português e Literatura. “Você gostaria de dar uma palestra lá no colégio?”. “Sobre o que exatamente?”. “Um dos livros que cairá no vestibular da Uerj.” “Nunca fiz isso antes, mas aceito sim.” Ao ver a lista de livros disponíveis, a escolha se deu naturalmente: “O Conto da Aia”, de Margareth Atwood. “Sabia que escolheria este.”
Meu amor à Literatura fluiu deste nascedouro: seu nome, Mércia. E como não creio em encontros fortuitos, assenti prontamente.
A apresentação foi na última terça. Ao adentrar o pátio da escola, a nostalgia escapou das paredes e me deteve em seus braços, pois toda saudade é o contorno de uma presença. Subi as escadas, acomodei-me na sala à espera dos alunos. A alma serena. Talvez seja a paz das primeiras vezes.
Ao terminar, a professora parecia surpresa. “Ela nem abria a boca nas aulas, demorei meses para ouvir a sua voz e agora falando desse jeito.” Isso me fez retornar ao casulo da lembrança, onde a memória muda e nos molda ao voo do tempo. O tom de orgulho vibrava em seus olhos. Com asas recém-nascidas, planei o ventre de minhas origens.
Eu me recordo que na adolescência, apesar de muito fechada, sempre ia bem nos seminários. Amava apresentar trabalhos. E algo me intrigava, pois quando eu falava as pessoas realmente paravam para ouvir. Só que nessa época nem imaginava que um dia regressaria em outra perspectiva. O que mais me emocionou? O reencontro com a menina que fui um dia.
Eu amo me expor ao risco ( não riscos absurdos, mas riscos possíveis ). E há meses eu havia perdido isso. Até o ato de planejar uma viagem me cansava profundamente. Perdi a fagulha que incendeia raízes. Mas, insisti. Comprei a passagem para o Peru, e rascunhei coragem na pele dos sonhos.
Dezessete dias em um país desconhecido percorrendo três cidades. E pasmem, nunca me senti tão eu mesma. Durante toda a minha vida ouvi que era tímida e introvertida. Mas, nunca concordei com isso. A sensação de que havia partes dormentes e inacessíveis me perseguia. Como aflorar um lado meu que eu própria desconhecia?
No Peru, eu pude ser livre. Não me impus limites. Não segui tantas regras. Apenas sorvi a beleza. Fiz amizades improváveis, ouvi histórias, fui vulnerável. Enfrentei o medo de altura, mergulhei na aventura de ser outra. E, ao contrário do que pensava: eu fui sozinha, mas não fiquei sozinha. Fui atravessada por pessoas tão cheias de camadas. Seres díspares, solares.
Na viagem, encontrei mulheres fortes, inspiradoras. E me senti acolhida mesmo tão distante de casa. Mulheres que vão atrás de seus sonhos. Que escutam, que ousam, que apoiam. Nessa ânsia pelo mundo, colidi com olhares cujas fronteiras traziam mares profundos.
Mas como nem tudo são flores, passei por alguns dissabores. Perdi meu cartão de crédito ( ou foi furtado, não tenho certeza ), sofri um golpe de um taxista em Lima, tive minha mala destruída. E notei que a Noemi do passado teria se desestabilizado totalmente com tais fatos, não vou negar que fiquei um pouco aflita, porém, não afetou meu itinerário. Gerir a emoção quando algo sai do esperado sempre foi meu ponto fraco, e ao ver o quanto expandi nesse curto intervalo fiquei comovida.
Eu e a mania de controle tínhamos um casamento de longa duração que acabava respingando em outras relações. Esses dias assisti a um vídeo que falava sobre essa tentativa de ser independente a qualquer custo e o quanto isso oculta o medo de ser rejeitada ou ferida. O medo de se abrir e ficar à deriva. Esse “deixa que eu resolvo, eu dou conta, não precisa”, centralizando o mundo em minhas costas. O que me impede de baixar a guarda e permitir que alguém se aproxime. Talvez minhas altas exigências também sejam um meio de manter a distância.
Se você tem coragem de deixar para trás tudo que lhe é familiar e confortável (pode ser qualquer coisa, desde a sua casa aos seus antigos ressentimentos) [...] e se você aceitar cada um que encontre no caminho como professor, e se estiver preparada, acima de tudo, para encarar (e perdoar) algumas realidades bem difíceis sobre você mesma, então a verdade não lhe será negada.
( Elizabeth Gilbert no filme: Comer, Rezar e Amar. )
Após tantas divagações, chego à seguinte conclusão: não, eu não sou tímida. Eu apenas filtro onde ponho minha energia. Sondo o ambiente e se não me sentir segura, silencio. Não vou abrir minha vida para quem não confio. Só que também não sou extrovertida. Transito entre os polos do pêndulo. Amo a solitude, mas desfruto as boas companhias. E não quero com esse texto defender um ponto, e sim, abrir pontes sobre os rótulos que arrancamos. Particularmente, adoro desconstruir impressões, de não ser o que o outro pensa. De reinventar vivências e me desnudar para me vestir de outra maneira.
A palestra foi logo após a viagem.
Estranhei a confiança repentina.
Não houve suores, tremores,
ou frio na barriga.
Apenas a certeza de que
a menina estava ali,
para mim,
na primeira fila.