Viajei ao Peru nas minhas férias, e em algumas cidades, como Cusco e Huaraz ocorre o fenômeno chamado de “Soroche” ou “Mal da Altitude”, um mal-estar que acomete pessoas desacostumadas com altitudes elevadas. Devido à baixa pressão de oxigênio, certos sintomas costumam assomar nos que moram no nível do mar: fadiga, perda de apetite, dor de cabeça, falta de ar. Além disso, pode haver alteração do ritmo cardíaco, náuseas ou sonolência. Sabendo disso, resolvi me preparar dois meses antes, fazendo cardio, esteira e escada, quase diariamente.
Não sou uma pessoa esportiva ou atlética, para ser sincera. Mas, o ímpeto de explorar as montanhas nublou minha consciência. Fechei trekkings com algumas agências, comprei minha bota de trilheira, casaco reforçado, mochila nas costas, e é claro, folhas de coca a postos. A própria Dora aventureira.
O segredo para não sofrer de “Soroche” era o seguinte: aclimatar-se bem. Ou seja, caminhar até que o seu corpo se ajeite ao ar rarefeito. Beber chá de coca, hidratação constante, e para garantir, uma sorojchi pill. Cheguei à Huaraz, localizada à 3.052 m acima do mar, e já no Hostal senti o prelúdio do “Mal da Montanha”. Ao subir os poucos degraus até o meu quarto pude ouvir os batimentos acelerados, a respiração ofegante. Sentei-me na cama, um pouco tonta, atordoada. Mas, felizmente, durou poucos minutos.
Pela manhã, iria à Laguna Parón, a van nos deixaria bem próximos ao local, e para chegar ao Mirante deveríamos caminhar uns 25 minutos. Pensei: “Bom, parece tranquilo.” Mas, subitamente, após uns dez passos, parei com as mãos na cintura, coração arfante e pernas pesadas. Como se tivesse corrido uma maratona. Diminuí o ritmo, avistei o destino, e aprumei a postura. “Vou no meu próprio tempo”. Uma moça vinha alguns metros atrás, e começamos a andar pareadas, coincidindo as pausas. Após alcançar metade do trajeto percebi que a façanha seria impossível, abortei a missão, e decidi voltar à base. A Laguna estava logo abaixo, subiríamos apenas para contemplar sua extensão. A maior laguna da região.
Desistimos. Entre respiros alongados avistamos a Laguna. O azul turquesa dominou meus olhos, a beleza se impunha soberana. Quis encapsular aquela imensidão, imprimi-la em minhas entranhas. O maior registro é o que se finca nas órbitas. Há sempre um algo a mais que as fotos não abarcam. Esse frame que transpassa é a verdadeira lembrança.
Sabe aquela vertigem que sentimos antes de alcançar patamares mais altos? O medo de falhar, de não honrar o que sonhamos. A angústia que antecipa conquistas, e, às vezes, nos boicota. O desespero que enfurna raízes profundas. O medo de dar certo. Em seu livro “A Coragem de ser Imperfeito”, a autora Brené Brown afirma que um dos escudos universais contra a vulnerabilidade é o escudo da alegria como mau presságio. Para a pesquisadora, quando perdemos a capacidade ou o desejo de estar vulneráveis passamos a ver a alegria com desconfiança. Sabe aquele receio íntimo de que após algo maravilhoso, enfim, surja alguma tragédia? Como se fosse necessária uma gestão cósmica para equalizar dádivas entre os viventes. E com isso, deixamos de saudar o instante na largueza de seu intento.
Na série “The Bear”, o chef Carm decide assumir o restaurante do irmão que acaba de falecer. Com uma equipe frustrada e um ambiente hostil, precisa enfrentar suas feras internas e descobrir uma forma de dar voz a elas. Enquanto lida com o luto tenta assimilar as perguntas sem respostas, e por receio do fracasso se esquiva da vida, seu trabalho se torna uma fuga, dispensando o prazer para não sofrer. Mas escapar de si não é um beco sem saída?
Por que é tão difícil se aclimatar? Afoitos pelo cume, queremos crescer, ascender, expandir. E esse não é o problema. Mas, sem pausas não desfrutamos a subida com clareza. Inebriados pelo topo, resvalamos em pedras, rentes ao precipício. O risco vive à beira das certezas. Aclimatar significa ajustar o pouso, aquietar pressões externas, retomar o impulso para o último aclive. Aprumar-se para não sucumbir em terrenos íngremes. Aclimatar não é estacionar. Mas retomar o fôlego para apreciar a vista com vias abertas e pés firmes.
O sucesso não é plano. Essa inclinação natural, a diagonal que nos incita à crista é tão cansativa. Por que não se pode morar na mesma casa a vida inteira plantando tomates no quintal? Por que perdurar em um emprego que se gosta é sinal de acomodação? Seja a sua melhor versão, trabalhe enquanto eles dormem, persiga metas, faça networking, invista no tesouro direto. Eu mesma tenho dificuldade em desacelerar, ainda me sinto fora de lugar. Essa busca profana nos enreda em sua trama, mentes insatisfeitas comparando quão verdes estão as suas gramas. Enquanto isso, o céu nos convoca ao silêncio.
O que é sucesso para você? O que genuinamente lhe faz feliz? Os algoritmos distorcem parâmetros, desejos tirânicos nos escravizam. Questionamos nossas habilidades, não nos sentimos bem-sucedidos. Mas sob a pele da querência, qual presença nos arde? Sucesso que se mede só em dígitos apequena o nosso espírito.
Na Laguna Parón entendi sobre limites. Não exceder para satisfazer meu ego infantil que odeia perder. Não continuar era respeitar até onde poderia ir naquele momento. E não me definir pela desistência. Descer para acolher meu desconforto, e aceitar que a coragem é justamente esse roçar de fragilidades.
No dia seguinte, fiz o trekking à Laguna Congelada de Rocotuyoc, localizada a 4.550 m de altitude, uma caminhada de 1 hora, aproximadamente, e com a ajuda de uma família brasileira que conheci na van, terminei o percurso desafiador, e fui possuída por um estado de torpor. Eu não era exatamente a mesma Noemi do dia anterior?
Aclimatar.
Adaptar arestas
Para que entre as frestas
Dance o ar.