“Você é louca!” Se você é mulher, provavelmente, essa frase soará familiar aos seus ouvidos. Há séculos atribuem-se adornos linguísticos para desqualificar o feminino, sobretudo, quando não nos enquadramos no estereótipo a ser seguido. Mulher direita, correta, de respeito. A rebeldia feminina contra os dogmas sociais da maternidade, e a audácia em ceder aos fascínios do erotismo são continuamente punidos.
Há alguns anos, uma vizinha querida surtou. Ela tomava medicação, então sempre a víamos sentada no portão, amável e acessível. Em certa feita, decidi emprestar-lhe um livro. E para minha surpresa, no dia seguinte, lá estava ela, pedindo outro exemplar durante a devolução. Devorou vários em poucas semanas. Contudo, em um lapso, a mente sucumbiu às pulsões. Triste vê-la em tais condições, no limiar da razão. Pouco tempo depois, soube que havia sido internada. No espanto de uma tarde, a notícia: sabe quem faleceu?
Chorei de revolta. pelo descaso. pelo apagamento.
Não é de hoje que o Estado detém mulheres consideradas subversivas, um comportamento higienista que extirpa das ruas, mulheres, pobres, negros, e quaisquer minorias. Stella do Patrocínio foi uma delas.
Estava com um amigo, na Rua Voluntários da Pátria, em Botafogo, quando foi abordada pela polícia, e conduzida arbitrariamente ao Centro Psiquiátrico Pedro II, aos 21 anos de idade, lá recebeu o diagnóstico de esquizofrenia. Em 1966, transferiram-na para a Colônia Juliano Moreira, onde tomou injeções, medicamentos e eletrochoques, permanecendo até sua morte, em 1992, aos 51 anos, enterrada como indigente, em Inhaúma.
“Eu estava com saúde, adoeci. Eu não ia adoecer sozinha não. Mas eu estava com saúde. Estava com muita saúde. Me adoeceram. Me internaram no hospital e me deixaram internada. E agora eu vivo no hospital como doente.”
Stella do Patrocínio
Stella não era louca, ela foi enlouquecida. Algo bem diferente. Pensa aí com seus botões: “se hoje você fosse internado por acidente, conseguiria provar sua sanidade?” Ou cada gesto e palavra seriam distorcidos para manter o confinamento? Stella era uma poeta da oralidade, bordadora de vivências na lucidez de seus delírios. E nos anos 80, com a luta antimanicomial, um grupo de estudantes de arte iniciou oficinas para mulheres internadas, foi aí que Carla Guagliardi passou a gravar suas conversas com Stella, de 1986 a 1988, intituladas por esta, de o Falatório.
Uma mulher vibrante, tenaz, envolvente. Acautelada pelo racismo estrutural, silenciada pelo patriarcado. Um talento totalmente renegado, mas, o cárcere forçado de seu corpo não impediu o bramir de sua mente.
“Você está me comendo tanto pelos olhos que eu já não tenho de onde tirar forças pra te alimentar.
Stella do Patrocínio
Adelina Gomes, filha de camponeses, apaixonou-se por um homem aos 18 anos de idade, contudo, o pretendente não foi aceito por sua mãe. Obediente e submissa, Adelina se afasta do rapaz, reprimindo seus instintos pelo bem da família. Aos poucos, ela foi se tornando retraída, sombria, irritada. Quando em certo dia, simplesmente, estrangulou sua gata estimada.
Foi internada no dia 17 de março de 1937, diagnóstico: esquizofrenia, sendo submetida a tratamentos de convulsoterapia e eletrochoques, apresentando um quadro de negativismo e agressividade. Mas, as coisas começaram a mudar com a chegada da psiquiatra alagoana Nise da Silveira ao Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro.
Nise instalou um Ateliê de Pintura na Seção de Terapia Ocupacional, em que os clientes, como ela os chamava, podiam reverberar o inconsciente por meio da arte, revolucionando a saúde mental, nas vias do afeto. E foi nesse período que Adelina passou a frequentar o Ateliê e iniciou as primeiras pinturas. Seus instintos femininos mitigados pela figura materna eclodiam nas telas, seus medos e traumas vicejavam nos quadros como retratos de uma mente inquieta. A cura pelo olhar criativo.
Aurora Cursino dos Santos nasceu em 1896, em São José dos Campos, estudou até o terceiro ano, e já se afeiçoava à pintura. Na juventude, ela foi obrigada pelo pai a se casar, mas ficou apenas um dia com o marido. Seu sofrimento despontou no casamento, e a partir daí, entregou-se a uma vida mundana de prazeres, passando a se prostituir. Juntou algum dinheiro com o oficio, mas com o tempo, desiludiu-se e buscou outra atividade para se dedicar, tornando-se doméstica. Foi internada no Hospital Psiquiátrico de Perdizes, onde permaneceu por três anos. Em 1944, aos 48 anos, internada no Hospital do Juquery, começou a frequentar a Escola de Artes Plásticas.
Suas obras evocam delírios e memórias. Abusos, abortos, clérigos, falos, vaginas, todos convergem numa pictografia lúdica, a rememoração do passado, a livre associação em que palavras e imagens se sobrepõem sem divisórias. O universo-denúncia em que não sabemos discernir entre o real e o imaginário. Aurora descortina os estigmas de sua profissão, as violências de gênero, as sombras da religião, a perda da inocência. Um de seus diagnósticos: esquizofrenia parafrênica. A artista sofreu com eletrochoques, injeções de insulina, sossega-leões. E em 1955, foi lobotomizada, falecendo em 30 de outubro de 1959.
Se todos os seus pensamentos fossem audíveis,
será que você continuaria livre?
“Para de ser histérica.” Esse termo deriva-se da palavra grega “hystero” que significa útero, usado desde a época de Hipócrates para designar uma espécie de loucura associada às doenças do útero. E esse diagnóstico influenciou o surgimento da psicanálise no século XX, quando várias mulheres apareceram com sintomas estranhos: paralisia motora, cegueiras, fobias, perdas de consciência, anemias, impulsos suicidas. No entanto, as causas não eram orgânicas. Então, Sigmund Freud usou as técnicas de hipnose e de “cura pela fala” nas pacientes, a fim de acessar lembranças associadas ao instante em que o sintoma surgira, e assim, tentar corrigir o conflito psíquico.
Na verdade, essas mulheres desenvolveram sintomas físicos devido a uma luta cotidiana para controlar os próprios impulsos quando estes não se coadunavam à ordem familiar burguesa, em que eram excluídas da vida pública e confinadas em suas casas. Logo, quando elas demonstravam a “histeria” era a resistência ao modelo de feminilidade restritiva, pois elas não queriam se deixar aprisionar, ainda que a negação fosse apenas inconsciente. Elas queriam retomar o direito ao desejo.
Você conhece o Mito de Cassandra? A jovem era uma das filhas do Rei de Troia, Príamo. Uma mulher de notória beleza que se torna sacerdotisa do templo de Apolo e desperta o interesse do deus grego. Apolo tenta convencê-la a ceder aos seus ímpetos, e em troca, promete-lhe o dom da profecia. Cassandra o enreda em seus jogos e deixa entrever o possível enlace, então ele concede a dádiva. Mas, ao perceber que fora enganado, resolve se vingar. Como não poderia retirar o dom ofertado, ele pede a Cassandra um beijo, e insere em sua boca o castigo: nunca mais ninguém acreditaria no que ela dissesse. E assim, suas palavras restariam suspensas no vazio, sendo vista como louca ou delirante, apesar da veracidade de seus prenúncios. Cassandra avisou a Páris que sua busca por Helena traria destruição a Troia. Preveniu os troianos sobre os gregos escondidos no Cavalo de madeira. Advertiu Agamenon de que ele morreria ao voltar para casa, nas mãos de sua esposa Clitemnestra e seu amante Egisto. Mas, não foi ouvida.
Homens continuam fazendo mulheres duvidarem de si mesmas. Uma prática comum é o “gaslighting” , uma forma de manipulação sutil em que se busca distorcer a realidade e negá-la para que o outro acredite que você não disse ou fez algo. Inverte-se a culpa a fim de confundir o psicológico da vítima. O termo se originou do filme “Gaslight”, de 1944, em que um marido busca convencer a esposa de que ela está desvairando, até que a ilusão se torne realmente palpável.
Nós, mulheres. Enlouquecemos. Pela invalidez de nossos ditos, pela reclusão de nossos gestos, pelo domínio de nossos corpos, pelo grito de nossos ossos. Pela selvageria dos verdadeiros insanos.
Seremos loucas sim,
enquanto a sanidade
for sinônimo de
obediência.
Música para inspirar sua leitura.
1ª imagem: Stella do Patrocínio.
2ª imagem: Adelina Gomes.
3ª imagem: Nise da Silveira.
4ª imagem: Aurora Cursino dos Santos.
Vídeo: Stella do Patrocínio.
Dica de Filme: Nise: O coração da loucura, disponível no Prime Vídeo.
Neste recorte do termo loucura, seremos loucas com muito orgulho. Texto maravilhoso amiga!!