Há uma tradição chilena bem interessante chamada “animitas”, que são altares colocados em diversos pontos, para homenagear entes queridos que morreram em espaços públicos. Além de serem uma forma de expressar saudades, também servem como sinais de alerta para futuros passageiros e motoristas, um lembrete para a prudência, de que naquele local alguém sofreu um grave acidente.
As animitas contêm fotografias, cartas, pertences, e em certos casos, até mesmo a carcaça de automóveis. Em minha viagem ao Chile, avistei muitas, e percebi que a maioria delas estava em estradas. Pequenas casinhas coloridas prenhas de memórias. Sinais de reverência e perigo, à margem, no afã de serem vistas.
E por analogia, quantos altares erguemos em nossas vidas? Inventários de nossos idos: pessoas, emoções, escolhas. Que funcionam como uma lembrança do que passou, e um aviso do que não pode ser repetido. Não apenas para evitar reincidências ou recaídas, mas também, para avisar outras pessoas dos riscos envolvidos. E o que me chamou a atenção foi a dimensão das animitas. Apesar de serem casas, não possuem o tamanho normal, não foram feitas para hospedar ninguém. Estão lá para nos fazer lembrar, não há estadias. Pois, sempre que fixamos residência em uma dor, ela pausa a nossa travessia.
Ali, no deserto do Atacama, senti uma descarga tão primitiva de liberdade que apenas me rendi ao sublime. Mesmo estando com meu namorado à época, eu me senti apaixonadamente só. Uma explosão de solitude que nunca havia experimentado antes. E aí, eu entendi tudo. O que iria atiçar meus poros e compor meus vazios mais íntimos não era uma pessoa, mas sim, a curiosidade pelo mundo, pelo desconhecido.
Sim, nós terminamos. Mas não culpo a epifania. Há fins embutidos desde o berço.
Talvez eu tenha lembrado disso porque hoje é aquele dia em que alguns se sentem mal por não ter companhia. E esse meu relato não quer dizer que abomino relações e quero virar eremita, longe disso. Contudo, é um estudo de mim mesma. De minhas bordas e fronteiras, do que eu quero, do que não tolero, do que é imprescindível manter. De seguir meus instintos quando sinto um embrulho no peito, uma trava em ser eu, que me impele a atuar numa versão menos caótica para não ofender o outro com meus estragos, por que sou tanta coisa, mas - às vezes - só veem a pintura de perto, logo eu, impressionista, é preciso se alonjar para ver melhor as linhas.
O amor romântico arrefeceu seu poder sobre mim. Há anos não me apaixono por ninguém, mas tenho me apaixonado por livros, lugares, saberes. Tenho preguiça de conhecer pessoas novas, e não quero voltar às antigas. Além de ter de lidar com a escassez de assunto e interesse, devo me preparar para o ghosting, desconfiar do “love bombing”, filtrar machistas e radicais políticos, rezar para não ser um stalker psicopata, e nem ter uma “ex-louca”, segundo eles dizem, é claro. Isso me cansa. Analiso os prós e contras, e acabo zapeando os streamings na minha cama.
Essa semana mesmo, ouvi a clássica frase: “E aí, já casou?” A primeira pergunta que ela me fez após eu dizer “Oi”. Eu, com a broa de coco nas mãos, ela gerando o QR Code na maquininha do cartão. Não havia lastro de intimidade entre nós, apenas a zona tênue entre duas conhecidas que não se conhecem o bastante para serem amigas nem tão pouco a ponto de serem estranhas. Soltei uma risada irônica antes de evocar o sonoro: “Não”. Em seus olhos, traços irrefutáveis de frustração.
Talvez eu tenha rido - justamente - pela ausência de sentido, como assim, o mais interessante em mim é ter um homem? A presença masculina como validação de meu estar no mundo. Um tanto absurdo. Eu ri porque a resposta era vasta, porque nem sei se quero me casar, ri porque desconfio, sou uma cética esperançosa, se isso é possível. “Você é exigente demais”, “Vai ficar pra titia hein”, “Onde estão os namoradinhos?”, “Nervosa assim homem nenhum vai te querer”. O fracasso feminino é a falta ( ou inveja ) do falo, diria Freud.
“ O amor é o que o amor faz. Amar é um ato de vontade, isto é, tanto uma intenção como uma ação. A vontade também implica escolha. Amar é um ato de vontade.”
Bell Hooks
Desromantizar o amor para humanizá-lo. Para vesti-lo com roupagens menos mágicas, e mais praticáveis. Um amor que não me entedie por ser estável. Que fecunde em mim novas coragens. Um amor nítido, lúcido, sólido. Mas nem por isso pouco selvagem.
Não fico triste no Dia dos Namorados. Celebro o amor que resiste, o amor no fundo do tacho, que a gente mexe até desgrudar da chapa, e prova, porque ainda é doce sob a crosta amarga. O amor que é sossego, calmaria. Que é Nando Reis tocando ao fundo, farfalhar de rede, soluço de rio, bolacha de nata, polenta quentinha, viagem marcada, bolinho de chuva, bebê sorrindo.
A beleza que o corpo carrega consigo a despeito das perdas. Às vezes, temos a urgência de esquecer para manter a sanidade. Mas, a nossa história é justamente a confluência de imprevistos, que, eventualmente, coincidem com a nossa vontade. E sofrer faz parte. O que nos resta é sinalizar nossas ausências, com toda a delicadeza. Indicar que ali jaz um amor que nasceu prematuro. Um familiar que partiu sem tempo para despedidas. Uma amizade que se perdeu na rotina. Como migalhas de pão, pistas na floresta, acidentalmente comidas.
Sabe a origem da palavra animita? Sua tradução latina significa “alma”. São memoriais da existência. Santuários de sentimentos. De longe, parecem simples construções, mas de perto,
vemos o amor que ficou em aberto,
esperando que alguém permaneça.
Que texto lindo amiga. Ps: Não sabia que deixar casinhas, fotos, cruz etc era um costume chileno, lá "na minha terra" (interior do interior) isso é muito comum, lembrando a gente até do ocorrido. Tem uma inclusive que sempre fico triste quando passo por ela (é em homenagem a alguns jovens que eu conhecia, que morreram em um acidente muito trágico). A gente inventa muitas formas de ritualizar e isso é lindo!