“À meia-noite buscarei sua alma, alma, alma.” O som se retorce em alto-falantes gastos, crianças meneiam os seus ingressos. Subo a rampa receosa rumo à sala escura. Uma mulher com lábios vermelhos e cabelos alongados nos fita do outro lado. A grade nos separa. De repente um tremor, seu corpo se encobre por uma negra penugem, o rosto exposto com dentes agudos, olhos penetrantes. Suas mãos agarram as barras, tenazes. Sons guturais invadem nossos ouvidos, atraídos e clementes. Quando de súbito, as grades se abrem, bruscas, e descemos a rampa, aflitos, pernas descrentes. A fuga encabeça os gritos. Na fila, o temor se propaga como fogo na floresta.
Monga, a Mulher-Gorila.
Talvez você não saiba, mas o clássico que marcou a nossa infância guarda uma história bem sombria. A famosa atração circense inspirou-se em um caso real. Uma mexicana de origem indígena chamada Júlia Pastrana sofria de hipertricose, uma síndrome conhecida pelo crescimento excessivo de pelos por todo o corpo. Com a mandíbula projetada para a frente, e medindo apenas 1,37m, provocava estranhamento com sua imagem.
Sua mãe decidiu vendê-la a um homem que organizava shows com aberrações. Mas, outro empresário do ramo, Theodore Lent, notou o quão singular era a sua aparência, e pôs-se a cortejá-la, avidamente. Júlia cedeu às investidas, casando-se com ele em 1854. Com Theodore, ela aprendeu a cantar e a dançar, e logo passou a se apresentar. Em 1860, tiveram um filho com a mesma síndrome, mas o pequeno veio a óbito. Dias depois, Júlia acabou falecendo devido a complicações no parto. Então, Lent vendeu os dois corpos a um professor da Universidade de Moscou. Contudo, ao perceber o sucesso dos corpos embalsamados, pediu-os de volta, exibindo as múmias da mulher e do filho em cabines de vidro. Theodore morreu na miséria, em 1880, claramente, enlouquecido.
No século XIX, a história de Júlia atraiu holofotes e tornou-se atração de ilusionismo. Com um jogo de espelhos, conhecido como “pepper’s ghost”, uma mulher se convertia em Mulher-Gorila, escapando da jaula, acossando os espectadores. Não sei você, mas fiquei horrorizada ao descobrir as origens de Monga. E só fiquei sabendo porque fui a uma peça maravilhosa, com a subversiva Rafaela Azevedo chamada “King Kong Fran”, em que a atriz e palhaça faz uso do humor e inteligência para satirizar os homens e inverter as lógicas de poder, ironizando estereótipos de gênero, através do constrangimento, a fim de alvejar o machismo estrutural e a misoginia.
Homens têm medo que as mulheres riam deles. Mulheres têm medo que os homens as matem.
Margaret Atwood
Rafaela ressignifica uma violência sexual sofrida através da arte, saindo do lugar de vítima e assumindo o possível lugar de algoz, em que devolve o desconforto que nos segue desde o nascimento. Desnudos e objetificados, vivenciam por uma hora e meia, o que nós - mulheres - passamos a vida inteira. O monólogo inspirado em sua mãe, Rosemeri, diagnosticada com esquizofrenia e borderline, não é um apelo vingativo, mas sim, o vislumbre de um mundo sem os homens no centro. Em que nossos corpos nos pertencem, unicamente.
Lendo a obra “A criação do Patriarcado”, de Gerda Lener, entendi que a apropriação pelos homens da capacidade sexual e reprodutiva das mulheres é anterior à formação da propriedade privada e da sociedade de classes. Segundo Engels, nas sociedades tribais, com o crescimento da pecuária e a origem do comércio, os homens passaram a se apropriar das sobras do pastoreio, constituindo-as propriedade privada, e com isso, a fim de garanti-la para si e para os herdeiros, instituíram a família monogâmica, que após o desenvolvimento do Estado se tornou a família patriarcal.
Por meio do controle da sexualidade feminina, exigindo a virgindade, legitimaram a sua prole, assegurando o direito à propriedade. A mulher foi confinada ao âmbito privado, afastada da vida laboral, um mero instrumento de reprodução e prazer. Subjugadas ao homem e ao cuidado materno.
Apesar das lutas feministas iniciadas na Segunda Onda, nas décadas de 60 e 70, em que o pessoal se tornou político, nosso corpo era território público. A decisão sobre nossa sexualidade e direitos reprodutivos se restringiam aos ditames masculinos. E, infelizmente, tais domínios ressoam até o presente. Como por exemplo, a PL 1904/24, proposta por Sóstenes Cavalcante, que impede o aborto em situações, atualmente, permitidas em lei, como o estupro.
Refere-se, especialmente, ao procedimento de Assistolia Fetal, que é a interrupção dos batimentos do feto antes da retirada do útero. Abortos acima de 22 semanas seriam equiparados ao homicídio, tendo penas de até 20 anos. Logo, a mulher teria uma punição superior à do estuprador, cuja pena máxima seria de 10 anos. Loucura, não?
E a questão só piora já que dentre as vítimas de violência sexual, as meninas de até 14 anos detêm primazia em relação às mulheres adultas, segundo o Atlas da Violência 2024, divulgado pelo IPEA. A análise aponta que, em 2022, 30,4% das meninas de 0 a 9 anos sofreram violência sexual. Esse percentual aumenta significativamente para 49,6% entre as meninas de 10 a 14 anos. Já entre adolescentes de 15 a 19 anos, o índice cai para 21,7%. E a maioria dos abusadores são parentes ou amigos próximos, afunilando seu grupo de apoio.
E são - justamente - essas meninas as mais afetadas com a PL, tendo em vista que há uma delonga em notar a gravidez e notificar os pais e as autoridades, devido à imaturidade emocional e à ausência de serviços qualificados nos arredores. E ao perder o prazo seriam forçadas a gestar o fruto de um estupro. Além de porem em risco sua integridade física durante o parto. Um total descaso.
“A Justiça de Goiás está impedindo que uma menina de 13 anos, grávida após um estupro, realize um aborto legal e seguro. A menina decidiu interromper a gestação quando estava com 18 semanas. Agora, depois de uma recusa do hospital e duas da justiça, caminha para a 28ª. A demora já fez com que ela cogitasse fazer o aborto por conta própria, colocando sua vida em risco.”
A rigidez de crenças sucumbe a humanidade. Quão frágeis são as linhas que nos sustentam? O Talibã parece algo remoto, distante. Será mesmo? O regime fundamentalista assumiu o controle de Cabul em agosto de 2021, após a saída da base americana. E a partir daí, o inferno se instaurou na vida de mulheres afegãs, que foram impelidas a trajar o hijab, cobrindo todo o rosto, proibidas de estudar, não podendo mais frequentar parques ou academias, e com isso, assomou uma onda de suicídios.
“Nunca se esqueça de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
Simone de Beauvoir
A arte imita a vida? Para Margareth Atwood, sim. A autora canadense publicou “O Conto da Aia”, em 1985, só que o romance intitulado por muitos como “distópico” é mais realista do que parece. A narrativa se descortina a partir de relatos de June, convertida na Aia Offred, que se depara com um mundo sombrio dominado por uma instituição totalitária chamada Gilead. Vestidos vermelhos, vozes emparedadas, úteros confiscados ao bel prazer do Estado. Fertilidade significa utilidade. E por isso, devem procriar e gerar os filhos da nação.
Seu novo nome não é acidental, “Of Fred”, significa que pertence a Fred, o comandante designado. Mulheres são coisas, propriedades. E seus corpos esvaziam-se de autonomia para cumprir sua função social. As Mulheres Não-Férteis se tornam Martas, espécie de governanta; e as Traidoras do Gênero, lésbicas e afins, vão às Colônias, trabalhando à exaustão em condições extremas.
As Aias são - periodicamente - violadas sobre os joelhos das esposas, nas chamadas “Cerimônias”, pois a maioria das mulheres são estéreis. Confinadas em seus pensamentos, despojadas de seus corpos, desejos e vontades, arrancam-lhes o próprio sentido de identidade. Revivem o trauma para servir ao regime. A cultura do medo sob o manto tirânico. Mas a chama sobrevive.
Não se engane, a tomada de poder não foi algo repentino. O mover silencioso sob a pele da rotina. O alerta para que não descansemos. A todo tempo, mãos opressoras estão se movendo, o gerúndio de mínimas ações que podem nos atingir quando estivermos distraídas.
Afinal de contas, onde estamos realmente seguras? O próprio pai abusou de sua filha na UTI. Meninas e adolescentes foram estupradas em abrigos no RS. O estado de vigília nasce acoplado aos genes, transmitido por ancestrais, fecha essa perna, se comporta, se vestindo assim tá pedindo, mulher direita se dá o respeito, ri baixo, olha esse decote. Como se nós fôssemos as responsáveis por conter a libido masculina. Aderem a culpa em nossas mentes, sedutoras lascivas atiçam a cobiça dos inocentes.
Margaret revelou em uma entrevista que nenhum fato do livro foi inventado, todos os eventos foram retirados da vida real, advindos de sua exímia pesquisa sobre a opressão feminina. Fiquei atordoada com a notícia. A violência de gênero é cíclica. E saber que ela continua ocorrendo a despeito do tempo, afrouxa a minha esperança. Mas, o que me motiva é saber que a resistência também vem em ondas.
Há dois anos precisávamos pedir autorização ao cônjuge para fazer laqueadura. Às vezes, quero uma revolução que exploda tudo e reconstrua do zero, dá vontade, eu juro. É duro aceitar que, muitas vezes, ela é um leve agitar de águas. Aprovada em 2022, a Lei 14.443 reduziu para 21 anos a idade mínima de homens e mulheres para esterilização voluntária, excluindo a exigência do consentimento. E caso já tenham dois filhos vivos, poderão fazer o procedimento antes do previsto.
Pequenos passos tímidos, repetidos,
tornam-se estradas.
Celebremos conquistas miúdas,
sacudamos juntas
as grades do patriarcado,
até que corram de nós,
acuados.
“Nolite te bastardes carborundorum.”
( Não deixe que os bastardos esmaguem vocês. )
Sugestões:
Assista à série “The Handmaids’Tale”, inspirada no romance “O Conto da Aia”, disponível no Prime Vídeo.
Ouça o episódio 30 do meu podcast “Poesia de Bolso”, disponível no Spotify: “O Conto da Aia e o Silêncio Feminino”.
Música: “Todas Putxs”- Ekena.
Diante do crescendo dessas atrocidades que temos observado, sua fala parece "a voz que clama no deserto". Mas foi no deserto que João clamou. E no entanto, muitos vinham a ele para ouvir A Verdade.
Há tempos a tv exibia uma campanha onde alguém se pronunciava contra alguma coisa ou situação. Disseram prá ele desistir, pois as pessoas passavam por ele sem notar a sua presença, muito menos a sua fala. Ele respondeu:
Se eu me calar, eles terão vencido